terça-feira, 8 de julho de 2014

Os mocárabes no Al-Andalus: a encruzilhada de três culturas


Na Alta Idade Média, o Califado do Al-Andalus, que abrangia a maior parte da Península Ibérica, era um dos estados mais prósperos e desenvolvidos do mundo, nos mais diversos domínios.  
Após a invasão de 711, o Al-Andalus tornou-se uma província do grande califado islâmico, que se estendia do Atlântico ao Indo, cuja capital foi Damasco e posteriormente Bagdade. Em 756, o Al-Andalus tornou-se um emirato independente e, em 929, foi implantado o califado.
A sua capital, Córdova, situada nas margens do rio Guadalquivir, era uma metrópole com mais de 250.000 habitantes.
Em Córdova e nas cidades, vilas e aldeias do califado, bem como nos reinos cristãos do Norte, havia muitas pessoas que falavam e vestiam-se como árabes. Mas eles não eram  muçulmanos. Eram cristãos, que ficaram conhecidos para a História como moçárabes, denominação que tem a sua origem na palavra árabe musta‘rib.
Na sequência da conquista muçulmana de 711, eles aceitaram a nova ordem política, social, económica e militar islâmica.
De acordo com os preceitos do Alcorão, que não aceita compulsão em matéria de religião, os muçulmanos devem respeitar os cristãos e os judeus que vivem sob seu domínio. Eles são chamados de "povos do Livro" (Ahl al-Kitab), o que lhes permitiu praticar a sua religião, desde que eles não praticassem o proselitismo
A coexistência das três religiões foi baseada num pacto que reconhecia a liberdade de culto e o direito de organizar-se nos domínios legal e municipal. Por seu turno, reconhecia-se a autoridade civil e militar islâmica e autoridade civil e a obrigação de pagar um imposto especial: a jizya.
A maioria dos moçárabes vivia nas áreas rurais, mas existam comunidades importantes em cidades como Córdoba, Mérida, Sevilha, Granada, Toledo, Saragoça e Lisboa.
No caso do futuro território português, a existência de comunidades cristãs é atestada não só pelos textos de Edrisi e de Abe Hamid El Andalusi acerca do Santuário de São Vicente, em Sagres, mas também pelo facto de duas cidades algarvias terem nomes de santos cristãos, conservados sob a adaptação árabe: Sanbras (São Brás de Alportel) e Santa Mariya al-Harun (Santa Maria de Faro).
Em Lisboa, o número de cristãos devia ser significativo. Em 1109, o príncipe norueguês Sigurd dizia a respeito da cidade, por aí ter visitado, que a sua população era “meio cristã, meio pagã”.
Além disso, existem registos da presença de comunidades moçárabes na Estremadura e nas Beiras, nomeadamente em Coimbra.
Os moçárabes foram adaptando gradualmente a cultura árabe e alguns dos seus costumes. Muitos pararam de comer carne de porco, alguns adotaram a circuncisão e uma maioria significativa começou a exprimir-se em árabe. Mas a influência árabe foi sentida noutros aspetos, como a alimentação, o vestuário e a arquitetura.
Os moçárabes desenvolveram uma arquitetura distintiva, uma liturgia autónoma, conhecida como rito moçárabe, e tiveram um papel da maior relevância no desenvolvimento de relações económicas, sociais e culturais entre as civilizações cristã e islâmica.  
Mas um dos mais importantes legados dos moçárabes, que tem sido investigado com mais profundidade nos últimos anos, foi o desenvolvimento de uma teologia cristã independente.
Esta teologia moçárabe, preconizada por personalidades prestigiadas como Edipando, arcebispo de Toledo, e Félix, bispo de Urgel, assentava numa conceção adocianista da figura de Jesus.
Segundo essa conceção, Jesus era um ser humano, elevado à categoria divina, por desígnio de Deus, através da sua adoção.
Trata-se de uma cristologia a partir de baixo, que tinha sido defendida pelo Judeo-Cristianismo e pela escola teológica de Antioquia, entre outras correntes do Cristianismo Primitivo.
A sua preocupação era propor uma visão da fé em Jesus que pudesse unir, em vez de dividir, cristãos, judeus e muçulmanos. Uma visão que permitisse abrir as portas frutíferas de diálogo e de compreensão entre as três grandes tradições religiosas do mundo mediterrânico, no qual a Península Ibérica se insere.  
Atualmente, num mundo cada vez mais globalizado, no qual aumentam as relações entre os povos, o diálogo inter-religioso assume uma relevância cada vez mais premente, contribuindo para o progresso espiritual e ético da Humanidade. 

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